Carta de Anna Maria de Castro em homenagem ao pai, Josué

Agradeço aos organizadores desta homenagem a meu pai Josué de Castro por relembrar os 75 anos de seu mais importante livro. Um agradecimento muito especial à professora Tereza Campello pelo convite para participar deste encontro bem como pela iniciativa de instituir a cátedra Josué de Castro no âmbito da USP, uma das mais importantes universidades do Brasil. A ela também minha gratidão por ter concordado em ler o texto que com imensa alegria escrevi para este encontro.

Optei, após longa hesitação, por construir um texto que pudesse retratar o homem Josué nas suas relações com Anna Maria sua filha. Sempre tive, ao longo de minha vida, dificuldade, por conta de minha formação acadêmica, de distinguir o cientista e meu querido pai. Avaliei que esta seria uma oportunidade única para tal abordagem. Espero seja do agrado de todos.

A mãe, Glauce, com os filhos Anna Maria e Josué Fernando.  Imagem retirada do livro “Josué de Castro: Por um mundo sem fome”, de Xico Sá. São Paulo, Mercado Cultural, 2004.

Nasci em Roma, onde meu pai, atendendo a um convite, realizava como médico conferências sobre nutrição e obesidade. Glauce, minha mãe, embora grávida, acompanhava o marido, comportamento que seguiu por toda a vida, inclusive no prolongado exílio. Esta dedicação marcou a trajetória de vida de Josué.

Havia um vínculo invisível entre mim e meu pai que nos colocou lado a lado durante toda a vida. Entretanto, o desejo de fazer um depoimento na condição de sua filha aflorou quando fui convidada para prefaciar o livro de Jean Ziegler A fome no mundo explicada a meu filho em que o autor fala como um pai sobre as agruras da fome. Na oportunidade escrevi: “Quem afora um pai poderia conversar com toda franqueza e honestidade com o filho sobre tabus como sexo e fome? Quem senão um pai poderia sinceramente e sem temor cuidar de temas de impacto e que as sociedades têm se recusado a enfrentar com denodo e a buscar soluções satisfatórias.”

Glauce, Josué e Anna Maria. Imagem retirada do livro “Josué de Castro: Por um mundo sem fome”, de Xico Sá. São Paulo, Mercado Cultural, 2004.

Vivi pessoalmente esta experiência, cresci ouvindo meu pai falar de fome desde a mais tenra idade, a princípio como mera e atenta ouvinte, depois como jovem interessada e finalmente como também cientista social fascinada pelo tema e pelas ideias.

Adolescente pude conhecer a Europa com Josué e Glauce quando ele recebeu o Prêmio Internacional da Paz, em Helsinque. Fui apresentada e pude conversar com líderes mundiais e intelectuais que passei a admirar, como o poeta chileno Pablo Neruda.

A viagem se estendeu por outros países: Polônia, União Soviética, Itália, onde fomos recebidos em audiência pelo Papa Pio XII, e finalmente França, onde mais tarde iria eu completar meu doutorado.

Voltando ao Brasil, Josué diminuía sua atividade como médico e professor e cumpria seu papel como político. Eleito Deputado Federal pelo PTB de Pernambuco teve uma profícua passagem pela Câmara onde pode pautar em alguns momentos temas de importância para a população desvalida. A casa legislativa nos idos de 1990 fez editar um livro sobre a atividade de Josué como Deputado. Ele integrou a Frente Parlamentar Nacionalista, que se reuniu várias vezes em nosso apartamento em Copacabana, me permitindo conhecer destacados políticos da época. Quando da inauguração de Brasília com ele participei das festividades e conheci o Presidente João Goulart. Ainda assim ele não se considerava um bom político.

Carteira de identidade Josué, enquanto deputado. Imagem retirada do livro “Josué de Castro: Por um mundo sem fome”, de Xico Sá. São Paulo, Mercado Cultural, 2004.

Nesta ocasião eu frequentava o curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro onde Josué era professor titular de Geografia Humana, atividade interrompida uma vez que, eleito Presidente do Conselho Administrativo da FAO, estava obrigado a constantes deslocamentos para vários países. A seu convite pude comparecer e participar de inúmeras conferências na Itália.

Corria a década de 60 e minha relação com meu pai se acentuava. Neste período me formei, casei e engravidei de meu primeiro filho.

Josué aceitou convite do presidente João Goulart para tornar-se Embaixador do Brasil junto aos órgãos das Nações Unidas em Genebra. Vivia momento de satisfação pessoal pela oportunidade de servir o país como seu representante. Entretanto momentos difíceis se seguiriam.

Posse de Josué na presidência do Conselho Executivo da FAO-ONU, em 1952. Imagem retirada do livro “Josué de Castro: Por um mundo sem fome”, de Xico Sá. São Paulo, Mercado Cultural, 2004.

Tive um parto complicado e Josué precisou rapidamente deslocar-se de Genebra para me assistir como pai e como médico e não fora sua competência medica eu não teria sobrevivido. Atacada por enfermidade de difícil diagnostico, pelo menos à época, fui salva por solução por ele encontrada.

Na busca de continuar meu tratamento na Europa resolveu levar-me para Genebra, sua nova residência. Aceitei o convide desde que pudesse levar meu filho recém-nascido. Assim, em agosto de 1962 embarcamos todos, Josué, Glauce, Sonia, minha irmã mais nova, eu e o bebê em um Constellation da Panair do Brasil que percorreu toda a pista do aeroporto internacional do Galeão e lançou-se nas águas escuras da Baía de Guanabara. Foram momentos angustiantes para quem estava dentro do avião e para os parentes que estavam no aeroporto presenciando a decolagem que não aconteceu. Descobri que Josué não sabia nadar e perdi meu filho e ele seu neto.

Lentamente nos recuperamos e partimos de navio à Genebra. Voltei a morar com meus pais e durante um ano procurei reunir forças para voltar ao Brasil.

De volta, contrariando médicos e meu pai, resolvi ter um novo filho. Nasceu Marcio em 21 de fevereiro de 1964. Josué veio conhecer o neto e logo voltou ao trabalho. Em pouco mais de 40 dias editou-se o Ato Institucional nº1, que suprimiu os direitos constitucionais de inúmeros brasileiros, entre eles Josué de Castro.

Inaugurou-se um novo momento de preocupações e expectativas. Fixar residência em Paris foi uma opção possível por conta dos amigos que lá moravam e pelos convites de trabalho nas universidades.

Nosso contato ficou escasso e a proibição de entrar no País obrigou-me a viajar ao Chile e Peru para encontrá-lo. As cartas foram uma opção de contato, pois as ligações telefônicas eram caras e possivelmente censuradas.

Em resposta a uma carta que enviei em setembro de 1964, por ocasião de seu aniversário sua resposta até hoje toca meu coração. Josué escreveu:

 Josué com o físico Robert Oppenheimer, em 1964. Imagem retirada do livro “Josué de Castro: Por um mundo sem fome”, de Xico Sá. São Paulo, Mercado Cultural, 2004.

Minha filha,

Li as duas cartas que você mandou. Gostei muito do tom das mesmas. Tom de revolta certamente, mas de uma revolta consciente de tudo que se está passando.

(…) Gostei muito de sua disposição de participar do processo, de pagar sua cota pela emancipação do povo.

Na verdade, considero minha vida atribulada como um fato positivo, não cheia de glórias como você diz. Não as alcancei. Mas alcancei o respeito do mundo e a consagração de algumas de minhas ideias a serviço da humanidade.

Tenho trabalhado muito. O CID toma forma e consistência. Em decorrência de meu encontro com Robert Oppenheimer, nos Estados Unidos, surgiu a ideia de criarmos uma universidade voltada para o desenvolvimento.

Assim foi a vida de Josué, sempre voltado para uma nova iniciativa ou pesquisa em favor da humanidade.

Em 1973, aos 65 anos de idade, prematuramente morre Josué de Castro, em Paris, sem ter podido voltar ao Brasil.

Após o falecimento de meu pai assumi, comigo mesmo, o compromisso de não medir esforços para manter íntegro seu legado cientifico. O longo período de exílio, além da censura, fez desaparecer das livrarias seus livros, entrevistas e textos de conferências. Foi difícil sustentar a presença de suas ideias, apesar da continua presença da fome e da miséria em nosso País, e mesmo no mundo.

Não rejeitei convite de nenhuma região do Brasil. Estive presente em câmaras legislativas, universidades e centros culturais. Creio que fui relativamente vitoriosa por conta do grande número de amigos e de admiradores de suas obras. No âmbito das universidades foram desenvolvidas dissertações de mestrado e teses de doutorado. Eu mesma realizei para concurso de livre docência em Sociologia a tese Nutrição e desenvolvimento: analise de uma política, trabalho sobre iniciativas de Josué nos anos 50 e 60 que foram importantes para o combate à fome e à pobreza: a merenda escolar, o SAPS, os restaurantes populares, o salário mínimo.

Josué de Castro com Juscelino Kubitschek. Imagem retirada do livro “Josué de Castro: Por um mundo sem fome”, de Xico Sá. São Paulo, Mercado Cultural, 2004.

Em 2003, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, sua casa de trabalho concedeu-lhe o título de Doutor Honoris Causa post-mortem. Nos Governos do Presidente Lula e da Presidenta Dilma foram prestadas várias homenagens a Josué, Patrono do CONSEA e cientista sempre lembrado nas Jornadas sobre segurança alimentar que terminaram dando ensejo a importante lei sobre Segurança Alimentar (LOSAN).

Em 2003, foi personagem do Projeto Memória, iniciativa da Fundação Banco do Brasil decisiva para incrementar o reconhecimento de sua obra.

Finalmente estimaria compartilhar um breve apanhado de seus mais importantes pensamentos:

Os grandes descobrimentos do século XX foram a fome e a bomba atômica, e a tomada de consciência destas duas realidades que pesam sobre a humanidade transformaria o pensamento político mundial. A bomba atômica instrumento radical de suicídio coletivo, tornou a guerra impossível, deve-se falar em paz. A fome englobando dois significados bem distintos, um de natureza fisiológico e outro de natureza social responsável pela tensão no mundo – tensão que reina entre os povos pobres e famintos que vivem em sociedades de economias dependentes e os povos ricos e alimentados que habitam os países industrializados. É a tensão entre aqueles que não comem e aqueles que não dormem com medo dos que têm fome.

Muito obrigada,

Anna Maria de Castro