Terceira mesa debate concentração, expansão do agronegócio e distribuição de alimentos
Safras recordes, elevação da produtividade, expansão territorial: o Brasil se tornou, dos anos 1940 para cá, uma potência agrícola mundial, passando a figurar entre os grandes exportadores de alimentos do mundo. Contudo – e contraditoriamente – não parece capaz de se livrar da fome que, agravada pela pandemia e pelo desmonte de políticas públicas em anos recentes, atinge 19 milhões de brasileiros hoje.
Esse é o nó que a terceira mesa do Seminário “Geografia da Fome, 75 anos depois: novos e velhos dilemas” tentou desatar nesta quarta (01/12): como pode um país que produz alimentos em abundância testemunhar, ao mesmo tempo, tantas pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional grave?
O debate foi mediado por Adriana do Nascimento Silva (Fetape), que é agricultora familiar em Pernambuco, e participaram Ana Chamma (GPP/Esalq e Imaflora), Arilson Favareto (UFABC e Cebrap), Walter Belik (Unicamp e Instituto Fome Zero) e Maria Emília Pacheco (Fase).
Ana Chamma apontou que, com um processo de “modernização conservadora” – ou seja, sem uma agenda de reformas estruturantes -, o Brasil passou por profundas mudanças no período entre 1940 e 2017 (houve, por exemplo, redução da população rural de 69% para 15% do total nacional) sem, contudo, alterar os alicerces das desigualdades nacionais. A estrutura fundiária baseada em latifúndios e monoculturas manteve o Brasil como economia primária e exportadora. Como consequência, a modernização brasileira não resultou em igualdade e bem-estar social, havendo inclusive uma leve piora no Índice de Gini da concentração fundiária, que era de 0,83 em 1940 e passou para 0,85 em 2017 (quanto mais perto de 1, mais desigual o país é).
Chamma ainda destacou relatório do Imaflora, feito em parceria com o GPP/Esalq (no prelo, deve ser lançado em meados de dezembro), que detecta um padrão no desenvolvimento agrário e no uso da terra no Brasil. A agricultura avança sobre áreas de pastagem; e a pastagem, por sua vez, avança sobre a vegetação nativa, com uma incorporação de terras sob taxas constantes ao longo do tempo (em média, 2 milhões de hectares ao ano). O estudo indica também expansão em área e em produtividade da soja e, por outro lado, retração de plantações de feijão no Norte, no Nordeste e no Sul, passando a haver uma concentração do grão em latifúndios no Centro Oeste.
Arilson Favareto focou sua fala em desconstruir alguns mitos que o agronegócio cria sobre si próprio, como o fato de representar “progresso” e de não ser responsável por danos ambientais como, por exemplo, o desmatamento. “Em que medida as afirmações do agronegócio são verdade?”, perguntou o professor. A partir de dados, Favareto foi desmontando os argumentos do agronegócio, indicando se tratarem de “meias-verdades”. Afinal, se é verdade que houve aumento da produtividade em locais onde o agronegócio já estava instalado, em processo de intensificação, isso não impediu a apropriação crescente de terras, em processo de expansão da fronteira agrícola.
Favareto, comentando estudo realizado na região do Matopiba, tida como “vitrine” do agronegócio no país, foi taxativo: “Há muito mais pobreza e desigualdade do que riqueza e bem-estar nos municípios do Matopiba”. Analisando as cidades com maiores índices de produção de soja, percebe-se que o alardeado “progresso” não se traduz em melhora nos indicadores de pobreza e de desigualdade; pelo contrário, em geral, onde mais há soja, há mais pobreza, tomando por comparação as médias dos estados a que cada cidade analisada pertence. Dessa forma, o “progresso” esbarra em um modelo de desenvolvimento de concentração fundiária e produtiva que bloqueia a irradiação dos benefícios para todo o território.
Já Walter Belik atentou a outro ponto do debate, para além da produção em si: os dilemas do abastecimento e da distribuição de alimentos. Afinal – como o Brasil testemunha frente a suas safras recordes de commodities – aumentar a produção, somente, não resolve o problema da fome: a solução envolve o tipo de alimento que se produz e como ele é distribuído. Belik ressaltou a desigualdade na estrutura alimentar das famílias brasileiras: “O gasto médio com alimentação das famílias com renda acima de 25 salários mínimos é 456% maior que das famílias com renda até 2 salários mínimos”, apontou. O resultado dessa diferença é que há, além de concentração produtiva, uma concentração do consumo também: no Brasil, muitos comem pouco enquanto poucos comem muito.
Nesse contexto, Belik destacou as mudanças que ocorreram na forma de comercialização de alimentos, cada vez mais concentrados em grandes supermercados, reduzindo o espaço das feiras, dos mercados de bairro e de atacadistas em geral, como as Ceasas. Belik aponta, como respostas possíveis às problemáticas atuais, para a costura entre circuitos curtos e longos de consumo, além do avanço em programas e políticas de abastecimento, o investimento da agricultura familiar em plataformas digitais e a concessão de certificações de qualidade. Entretanto, o verdadeiro remédio estaria nas reformas estruturais, como as que defendia Josué de Castro: uma reforma agrária que incentive uma economia rural diversificada e a quebra do modelo de desenvolvimento baseado em monoculturas.
Por fim, Maria Emília falou sobre a agricultura familiar, ressaltando não apenas sua importância econômica para o Brasil como também sua contribuição em âmbito cultural e ecológico. Os programas estatais de compra de alimentos de agricultores familiares, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), foram destacados por agirem nesse âmbito multidimensional, significando não apenas um benefício econômico mas também a consolidação de outros modos de relação com o território.
A pesquisadora da Fase destacou a riqueza que há na diversidade de modos de ser no Brasil, trazendo ao centro do debate as demarcações de territórios tradicionais quilombolas e de povos originários, além das ações voltadas à Reforma Agrária: “Tenhamos a coragem cívica, em nome do direito humano à alimentação e nutrição adequadas, de trazer de forma firme para a agenda o debate sobre Reforma Agrária e direitos territoriais. Não há futuro para o Brasil sem o reconhecimento pleno do que o campesinato, com todos os seus segmentos, é capaz de produzir – e não só em termos de quantidade, mas também de qualidade. Enfrentar a fome é enfrentar junto a capacidade de alimentarmos com qualidade e diversidade, e não sermos tragados pelo adoecimento daquilo que o agronegócio produz”.
Hoje (2/12) é o último dia do Seminário. Acompanhe aqui.