Imagem de videoconferência com Elaine Azevedo, Janine Giuberti, Ricardo Abramovay, Selma Dealdina, Tasso Azevedo e Ane Alencar

Seminário encerra discutindo impacto ambiental dos sistemas alimentares

A mudança do uso da terra e a agropecuária são os setores que mais respondem pelas emissões de gases de efeito estufa no Brasil, colocando-nos no ranking dos países que mais contribuem para a crise climática. Mas, diferente de outras realidades, o Brasil tem a oportunidade de reduzir seus impactos por meio do controle do desmatamento e da transformação dos seus sistemas alimentares. A última mesa do seminário “Geografia da Fome: 75 anos depois – Novos e velhos dilemas”, realizada nesta quinta (2), direcionou seu olhar para essa questão.

Para discutir essa sindemia – a conjunção de três pandemias, a da fome, a da obesidade e a das mudanças climáticas -, Janine Giuberti (Idec) recebeu, na mesa “Geografia da Crise Socioambiental e Alimentar”, Ricardo Abramovay (IEA/USP), Ane Alencar (IPAM), Elaine Azevedo (UFES e Escola Livre ComidaETC), Tasso Azevedo (MapBiomas) e Selma Dealdina (CONAQ).

Mais de 95% do desmatamento no Brasil é causado pela conversão da terra para agricultura e pecuária. Isso, somado às emissões de gases de efeito estufa da agropecuária, resulta em pouco mais de 70% das emissões do Brasil, dando ao país o 5º lugar nesse ranking. Os dados foram trazidos por Tasso Azevedo, que ainda apresentou a evolução do uso da terra no país desde 1985.

“A gente percebe principalmente transformações de ambientes naturais para ambientes antropizados na forma de pasto ou agricultura, que são utilizados na produção de alimentos e outros produtos”, afirma. Ele ressalta que o equivalente a 18 vezes a área do estado do Rio de Janeiro foi convertido durante esses 35 anos. Ainda assim, o crescimento da agricultura no Brasil se deu especialmente pela cana-de-açúcar e a soja – e em nenhum dos dois casos há produção direta de alimento.

Ane Alencar enfocou o bioma Amazônia e também mostrou que o que está motivando o desmatamento não está virando comida na mesa das pessoas: “Não necessariamente quando a gente tem uma redução no desmatamento a gente tem uma redução na produção”. Ela ainda chama a atenção para o avanço da pecuária especulativa sobre Florestas Públicas Não Destinadas e o crescimento do desmatamento e da pecuária em Unidades de Conservação.

“O desmatamento gera fogo, que tem impactos econômicos graves, perda de produção, de infraestrutura, de recursos florestais, madeireiros, plantas medicinais, caça, aumento de doenças respiratórias, fechamento de aeroportos, entre outras coisas. Mas tem um impacto forte na questão da segurança alimentar, principalmente dos povos e comunidades tradicionais”, afirma. A solução, aponta, passa por controle inteligente para combater desmatamento, destinação de florestas públicas, tirando terras do mercado, consolidação da economia de base florestal, conservação de ativos florestais privados e investimento na produção sustentável.

Ricardo Abramovay se propôs a abordar uma dimensão essencial da obra de Josué de Castro, que hoje é conhecida como sistemas alimentares globais. “As duas grandes conferências realizadas neste ano, a conferência climática e a da biodiversidade, mostraram que o atual padrão de funcionamento do sistema agroalimentar global é um dos mais importantes vetores da crise climática, da erosão da biodiversidade e compromete cada vez mais a saúde humana”, diz. Assim sendo, a questão que fica é como obter os alimentos e de que alimentos o mundo precisa.

O professor da USP também ressalta o grande volume de emissões de gases vindos de animais ruminantes, o sofrimento animal ligado ao consumo de carne, o excesso de antibióticos consumido pelos animais e os cultivos extensos e monótonos, que levam à erosão e ao extermínio da vida do solo. “Imaginar que é na aposta nesse sistema que está o futuro da riqueza e da prosperidade do Brasil é não conseguir tirar o olho do retrovisor”, afirma. Para ele, o rastreamento de como os alimentos são produzidos será cada vez mais a bola da vez dos mercados contemporâneos, e não os baixos preços. Investir em carne de qualidade é fundamental nesse sentido.

Quilombola do território Sapê do Norte (ES) – impactado pela monocultura de eucalipto nos anos 1960 -, Selma Dealdina trouxe a problemática do racismo ambiental e lembrou incêndios recentes em territórios quilombolas. “Nos 70% dos produtos que chegam à mesa dos brasileiros e são produzidos pela agricultura média e familiar também tem produção dos territórios quilombolas”, destaca. Como, então, quem produz não tem território suficiente para plantar nem consegue se alimentar, questiona.

“A gente sabe que um dos espaços que a gente poderia fazer esse debate com muita tranquilidade e de uma forma em que a sociedade civil participe com fidelidade, seria através do CONSEA, que foi um dos primeiros conselhos que o atual governo extinguiu, junto com mais 35”, diz Selma.

Encerrando a mesa, Elaine Azevedo trouxe uma reflexão sobre a racionalidade que não mudou ao longo dos últimos 521 anos. “A gente já sabe que por trás da fome há um sistema agroalimentar hegemônico e predador e que por trás dele e do sistema carne estão outros sistemas – o capitalismo e o neoliberalismo, que movem os fios do fantasma da fome no Brasil e no mundo também”, afirma, ponderando que há várias facetas do capitalismo e países capitalistas que superaram a fome. Mas o capitalismo do Brasil é clássico e perverso, porque é colonial e racial.

“A gente ignorou por muito tempo as questões sociais que ainda permeiam a fome e o sofrimento social do povo brasileiro e a gente nunca superou esses processos estruturais”. A monocultura, baseada em uma mentalidade colonizadora que busca fortalecer as mercadorias em vez de comida pro povo e enviar parte da soberania alimentar para mãos estrangeiras, nunca mudou, segundo Elaine. Há, entretanto, novidades: as corporações agroalimentares, as empresas de insumo e tecnologia agrícola, os frigoríficos, a indústria de processados e ultraprocessados, a indústria químicas de aditivos sintéticos e os supermercados – e, por fim, o sistema farmacêutico, médico e tecnológico, que lucra com as doenças. Dessa forma, em um sistema agroalimentar colonial, a comida, patrimônio cultural, também foi enfraquecida: amendoim, arroz, mandioca, milho, taioba foram sequestrados por ultraprocessados, trigo, maçã, alface americana.

Assim, como concluiu a professora da UFES, a fome tem a ver com valores humanos, conforme já dizia Josué de Castro: é um flagelo de seres humanos contra seres humanos.

Após a mesa, Tereza Campello (Cátedra Josué de Castro) encerrou o seminário pontuando quatro grandes acordos que o evento apresentou e que dialogam com Josué: 1) a fome é política e o Brasil tem abundâncias; 2) as desigualdades são entrecruzadas com a agenda dos sistemas alimentares e da fome; 3) a expansão da produção e a modernização da agricultura se deu mantendo e aprofundando a concentração fundiária, com perda de biodiversidade e geração de crise climática e sem compromisso com a produção de comida para o povo; 4) a importância do papel do Estado como regulador e ator para reversão dessa situação, através de políticas públicas.

“Nós queremos abrir com esse seminário um processo. Estamos construindo um documento de forma coletiva, com o grupo da Cátedra, que são mais de 30 pesquisadores e ativistas, com um conjunto de pessoas que se somaram ao longo desse processo. O sucesso desse seminário tem muito mais a ver com a gente ter conseguido levantar essas questões, organizar aquilo que a gente tem acordo e se juntar para construir coletivamente uma narrativa”, afirma Tereza Campello.

“Nós acreditamos que, sim, é, possível uma nova geografia para esse país, sem fome, com desenvolvimento, com inclusão, com produção de alimentos e com o país garantindo o direito humano à alimentação”, conclui.