Com olhares múltiplos sobre a fome no Brasil,  livro “Da fome à fome” é lançado

27 vozes tecem uma narrativa que busca compreender como pode um país líder em produção agropecuária, com registros consecutivos de recordes em safras, ser também um país que retorna ao Mapa da Fome, com mais da metade de sua população enfrentando algum grau de insegurança alimentar. Esse é o nó que as autoras e os autores do livro Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro, lançado nesta 5ª (14/7) pela Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, procuram desatar.

O evento de lançamento do livro contou com a participação de parte das/os 27 autoras/es que compõem o mosaico de interpretações sobre o complexo problema da insegurança alimentar no Brasil. Assista como foi:

A obra coloca em xeque o sistema agroalimentar brasileiro, retomando e mostrando a atualidade do pensamento de Josué de Castro 76 anos após o lançamento do clássico “Geografia da Fome”. Já na década de 1940, o intelectual pernambucano insistia que a fome não decorria de questões de ordem natural; mas sim de decisões políticas – ou da falta delas. O recente desmonte sofrido pela estrutura de combate à fome e de promoção da segurança alimentar dos brasileiros mostra-se como exemplo didático do que dizia Josué de Castro sete décadas atrás.

Carlos Monteiro, coordenador do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) e referência mundial em sua área, destacou as mudanças nos padrões alimentares da população brasileira, apontando que a fome testemunhada por Josué de Castro não é a mesma que enfrentamos atualmente. Hoje, a fome pode inclusive estar associada à obesidade e ao consumo excessivo de calorias, “fome disfarçada de fartura”.

“Ela ocorre devido a uma mudança no sistema alimentar e na tecnologia de alimentos. A indústria de alimentos descobriu uma fórmula para ganhar muito dinheiro. De que maneira? Usando algumas poucas variedades de alimentos de alta produtividade e destruindo esses alimentos para obter substâncias – proteínas, carboidratos, gorduras –, fazendo uma reengenharia dessas substâncias e criando produtos alimentícios de baixíssimo custo. E com o uso outra vez da tecnologia, sobretudo dos aditivos, cria produtos que parecem alimentos e que, às vezes, são mais prazerosos – porque são produzidos para gerarem prazer, preferencialmente dependência. São os alimentos ultraprocessados. Com essa mudança no sistema, passamos a ter outra fome: a fome com excesso de calorias. Essa fome está no mundo inteiro, é uma pandemia. As corporações que produzem esses alimentos capturaram o sistema alimentar global”, afirma Monteiro.

José Graziano da Silva, presidente do Instituto Fome Zero e ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), relembrou o período em que Josué de Castro atuou na FAO como presidente do Conselho Executivo da instituição, momento em que se insurgiu contra a inexistência de um fundo mundial para combater a fome. Ele encampou a proposta de tal forma que, mais tarde, foi “convidado” a não se recandidatar ao cargo.

“Esse é o Josué de Castro: ele não perdeu uma chance, em nenhum lugar do mundo, desde as margens do Capibaribe até as organizações internacionais, de batalhar no combate à fome de maneira intransigente, não aceitando nenhum número para a fome que fosse diferente do zero. Ele não é apenas um precursor; é um militante, um intelectual engajado”, completa Graziano.

Ana Paula Ribeiro, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), ressaltou a rede de solidariedade construída pelos movimentos sociais para combater a fome, fortalecida no período da pandemia de covid-19 – mas que começou a ser tecida antes disso, da mesma forma como o recrudescimento da fome no Brasil se inicia antes da emergência sanitária e não pode ser explicado somente por ela: “Os programas não começaram a ser destruídos no governo Bolsonaro; sentimos isso na base do MTST já em 2017, o povo passando por dificuldades imensas desde o golpe que derrubou a presidenta Dilma, quando começaram a ser cortados os projetos sociais. Ali a gente começa a construir nossas cozinhas comunitárias, já sentindo essa dificuldade. Na pandemia isso só se aprofundou. Hoje são 31 Cozinhas Solidárias, de Roraima ao Rio Grande do Sul, alcançando 20 mil pessoas. Construímos uma rede imensa de solidariedade”, destaca Ribeiro.

Na abertura do evento, a professora titular da Cátedra Josué de Castro e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, contou sobre o processo de construção do livro, iniciado com o seminário “Geografia da Fome, 75 anos depois: novos e velhos dilemas”, promovido pela Cátedra no final de 2021.“Havia um sentimento comum de que a leitura que vinha sendo feita majoritariamente sobre a problemática da fome era superficial e insuficiente para dar conta do que estava acontecendo, do que motivava a volta do Brasil ao Mapa da Fome. O que nos unia em torno da construção do seminário e do livro era a necessidade de aprofundar o debate e oferecer um diagnóstico efetivo sobre o conjunto dos determinantes da volta à fome no Brasil. Os 27 autores nos oferecem olhares complexos e múltiplos sobre o fenômeno da fome, recuperando o esforço que Josué de Castro já fazia em 1946, dizendo exatamente isso: não podemos olhar a fome somente pelo aspecto da nutrição; temos que olhar a geografia, a economia, olhar o conjunto de aspectos”, relata Campello.


Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro possui uma versão digital, de acesso livre, disponível aqui. Os exemplares impressos podem ser adquiridos junto à Editora Elefante neste link. Além de Tereza Campello, o livro é organizado também pela pesquisadora-assistente da Cátedra, Ana Paula Bortoletto. A lista completa de autoras/es pode ser acessada aqui.