Geografia da Fome, 75 anos

O que Josué de Castro percebeu há mais de sete décadas segue verdadeiro: a fome é uma questão política. Veja como os indicadores estatísticos e políticas públicas andaram juntos durante esse tempo todo.

Josué de Castro, médico e pesquisador, inaugurou uma nova forma de pensar a fome no país, explicitando-a como consequência de decisões humanas: entendeu a fome como uma questão política e não como uma determinação natural.

A história e os números desse fenômeno no Brasil confirmam sua posição. Os avanços e recuos no combate à fome são consequência direta do modelo econômico e da construção de políticas públicas.

Muito do que Josué analisou há 75 anos na obra “Geografia da Fome” — as desigualdades regionais, a pouca diversidade na alimentação e a dificuldade de acesso à comida por uma parcela da população, por exemplo — permanece. Muito, também, já mudou.

Mapa das áreas alimentares do Brasil, publicado por Josué de Castro em 1946
Mapa das áreas alimentares do Brasil, publicado por Josué de Castro em 1946

Para entender melhor o que aconteceu nesses três quartos de século, esse material mergulha em indicadores históricos produzidos pelo IBGE. Com esses números e referências históricas, podemos entender melhor os avanços e retrocessos no combate à fome no país.

De início, visitamos os indicadores mais antigos sobre o tema: os números de desnutrição infantil, que revelam um Brasil desigual já na década de 1970.

Depois, olhamos para um novo indicador, criado em 2004, justamente em um momento em que a desnutrição infantil havia sido reduzida de forma sistemática e consistente e que o avanço no combate à fome exigia ferramentas mais sofisticadas que guiassem a política pública.

Por fim, comparamos os pratos de brasileiros contemporâneos. Analisando o que há — e o que falta — em suas mesas, é possível ver as diferentes caras que a fome tem hoje em dia.

Desnutrição Infantil

Quando falta comida entre crianças, pode ter certeza: já falta comida de forma sistemática em toda a sociedade. Os dados indicam que os mais jovens costumam ser os últimos a serem afetados pela falta de alimento: antes de deixar uma criança passar fome, o restante da família provavelmente já reduziu seu consumo de comida até onde era possível.

O percentual de desnutrição infantil é também o indicador histórico mais constante e confiável para acompanhar a evolução da fome no país – ao menos até meados dos anos 2000 e a criação do indicador de insegurança alimentar pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar.

Ciclicamente, pesquisadores medem o peso e a altura de crianças em todo o país. Quando o tamanho delas é muito menor que o padrão esperado para a idade, há desnutrição infantil.

Na prática, eles estão medindo um indicador particularmente cruel: a quantidade de crianças que, sem acesso à comida suficiente, tiveram o próprio desenvolvimento físico comprometido.

Pesquisas que estimam a prevalência da desnutrição infantil acontecem, ainda que com algumas mudanças metodológicas, no mínimo uma vez por década desde os anos 1970.

É nessa década também que inicia-se a institucionalização das políticas de combate à fome, cujas bases haviam sido estabelecidas no trabalhismo de Getúlio Vargas — muito por influência do trabalho de Josué.

A cada década, conforme o perfil da desnutrição no país se alterava, a percepção política sobre o tema também mudava. Revisitar esses dados é também uma oportunidade para revisitar as políticas públicas e o estado do país década por década.

Desnutrição infantil no Brasil — 1975 a 1989 1996 a 2019

  • até 10%
  • 10 a 20%
  • 20 a 30%
  • 30 a 40%
  • Acima de 40%

Já na primeira medição, feita pelo IBGE em 1975, os resultados revelaram a continuidade de algo que Josué de Castro viu décadas antes: uma intensa desigualdade regional, que se acentua com a separação entre o modo de vida urbano e o modo de vida rural.

Os dados mais antigos são segmentados em três regiões diferentes das usuais: Norte, Nordeste e Centro-Sul.

Em 1975, o percentual de desnutrição era de aproximadamente 24% no Centro-Sul, 48% no Nordeste e 39% no Norte – este último provavelmente subestimado, já que dados foram coletados apenas nas zonas urbanas.

Nesse momento histórico, a desnutrição e a insegurança alimentar eram muito elevadas. Uma parcela grande da população não tinha acesso à alimentação suficiente — e, quando tinha, a comida era pouco diversa.

Entretanto, era o início da institucionalização de políticas públicas como o Pronan (Programa Nacional de Alimentação e Nutrição) e o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar).

No levantamento seguinte, feito em 1989, já se vê uma grande redução nos indicadores em todas as regiões do país.

Com a redemocratização, a segunda metade da década de 1980 e o começo dos anos 1990 viram uma presença mais ativa da sociedade civil na elaboração de políticas públicas.

A medição seguinte, feita em 1996, traz algumas mudanças de metodologia e os resultados não podem ser comparados diretamente com os dados anteriores. Além disso, os dados agora são computados para as cinco regiões do país com as quais estamos acostumados.

Vinte anos depois, a grande desigualdade regional permanece. Entretanto, a pressão da sociedade e a participação da sociedade civil em iniciativas como a criação do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional preparam o terreno para uma transformação na década seguinte.

Em 2006, já se vê o resultado dessas ações, consolidadas em programas como o Bolsa Família e o Fome Zero. Como resultado, a fome — e, portanto, a desnutrição infantil — cai ao patamar mais baixo da série histórica.

Dados coletados em 2019, porém, mostram que os valores permanecem ainda em patamares semelhantes. Crises econômicas e, sobretudo, o progressivo desmonte de políticas de assistência impediram que a desnutrição continuasse em declínio no país.

Em vez de cair ainda mais, em direção a um cenário ideal de no máximo 5% de desnutrição infantil em todas as regiões, o indicador permaneceu praticamente no mesmo patamar.

Insegurança alimentar

A fome não se manifesta só quando a barriga ronca e não há comida na mesa: a experiência também molda as demais dimensões do viver — a forma de planejar o futuro, de interagir com os outros, de entender a si próprio.

Para muitos brasileiros, pode até ser que hoje haja alimento na geladeira, mas a insegurança sobre o dia seguinte é enorme. Esse temor é, também, uma faceta da fome.

Com a introdução da EBIA (Escala Brasileira de Medida Direta de Insegurança Alimentar), em 2004, a forma de mensurar a fome e a falta de acesso a alimentos no Brasil mudou e passou a incorporar tal dimensão.

Enquanto os levantamentos de desnutrição infantil, por exemplo, dependem de mensurações físicas de peso e altura, a EBIA depende somente da resposta a uma série de perguntas.

São questões sobre as experiências pessoais e as percepções que cada família tem sobre a própria alimentação, como a preocupação com falta de alimentos em curto prazo ou sobre não ter dinheiro suficiente para garantir comida variada e saudável.

De acordo com as respostas, cada domicílio é classificado em um de quatro estados de segurança alimentar, que vão da segurança, quando a preocupação com a fome não é imediata, até a insegurança grave, quando alimentos já faltam ou estão na iminência de faltar.

Com esse novo instrumento, tornou-se possível medir as condições alimentares da população de forma mais regular e ampla, geralmente junto de outras pesquisas já realizadas pelo IBGE e sem as complexidades e custos de tomar as medidas de altura e peso de inúmeras crianças.

Esses dados começaram a ser coletados justamente quando políticas públicas eficientes começavam a ter resultados no país. O contraste desses anos com os números mais recentes mostra bem a dimensão do retrocesso.

Segurança alimentar no Brasil — 2004 a 2020

A série histórica desse novo indicador começa em 2004. Neste ano, 65% da população estava em situação de segurança alimentar — isto é, sem maiores preocupações quanto ao acesso a comida de qualidade.

14% da população estava em insegurança alimentar leve, que ocorre quando uma família não tem certeza sobre o acesso a alimentação no futuro ou quando a qualidade da comida diminui para garantir alimentos em quantidade suficiente.

12% em insegurança alimentar moderada, que ocorre quando a quantidade de comida já começa a diminuir.

E 10% em insegurança alimentar grave, quando todos os moradores já deixaram de comer de forma suficiente — ou seja, quando a fome se instalou de forma cotidiana no domicílio.

Neste ano, vivia-se o início de programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, que teriam impacto significativo na redução da pobreza nos anos seguintes.

Na medição seguinte, de 2009, a quantidade de pessoas em segurança alimentar aumentou para 70%.

A insegurança alimentar leve subiu um pouco.

Entretanto, isso se deve a uma redução especialmente significativa na insegurança alimentar moderada...

...e na insegurança alimentar grave.

No intervalo entre 2009 e 2013, a insegurança alimentar caiu ainda mais. Quase três quartos da população estava em segurança alimentar.

A queda, dessa vez, aconteceu em todos os segmentos de insegurança alimentar. Uma década depois do início da série histórica, a insegurança alimentar chegava ao patamar mais baixo já registrado.

Entretanto, na medição seguinte, feita entre 2017 e 2018, o cenário começou a se inverter. O percentual de pessoas em segurança alimentar caiu abruptamente, ficando abaixo do patamar registrado em 2004.

Politicamente via-se a redução do investimento em serviços públicos que, somados a crises econômicas, tiveram efeitos rápidos na qualidade da alimentação da população.

Em 2020, a pandemia de Covid-19 se soma ao desmonte dos programas sociais e intensifica o aumento da fome, que já ocorria de forma rápida.

Os dados mais recentes mostram, que pela primeira vez desde o início dessa série histórica, há mais brasileiros em situação de insegurança alimentar do que em segurança.

55% da população do país têm algum grau de insegurança alimentar. Quase 10% convivem com a insegurança grave.

Tá, mas o que isso significa na vida real?

Como vimos, a partir dos últimos anos da década passada, a insegurança alimentar voltou a crescer no Brasil. Ainda que ilustrativos, os indicadores que mostramos não são necessários para notar essa realidade. A fome está presente como nunca nas capas de jornal e reportagens do noticiário. São relatos e imagens diárias de brasileiros com pratos vazios, procurando ossos descartados ou revirando o lixo.

A fome exibida nessas imagens, é claro, existe e é extremamente degradante. Entretanto, ela não é a única manifestação do fenômeno — e nem é a mais comum. Os brasileiros que estão expostos à insegurança alimentar muitas vezes têm algum tipo de comida no prato, mas frequentemente sem a diversidade ou a abundância necessária.

Para deixar o problema mais concreto, vamos olhar para onde toda a complexidade do sistema alimentar se manifesta: para o que a população tem na mesa.

A comida na mesa — Guia Alimentar — Excesso Calórico — Ultraprocessados — Pouca comida — Monotonia Alimentar

Uma textura de mesa

Primeiro, vamos olhar para uma alimentação considerada ideal pelo Guia alimentar para a população brasileira (2014). O documento traz exemplos de refeições saudáveis e suficientes para uma alimentação de qualidade, baseados em ingredientes que fazem parte da vida cotidiana dos brasileiros.

Um dos cafés da manhã sugeridos pelo guia inclui pão francês com manteiga, suco de laranja e mamão.

No almoço, não poderia faltar arroz com feijão, que vem acompanhado de bife grelhado, salada de tomate e salada de frutas para sobremesa.

O jantar é macarrão acompanhado de galeto e salada de folhas.

Repare que, além de fazer todas as refeições com variedade de alimentos, o brasileiro que consegue comer de forma parecida com o guia alimentar segue alguns princípios importantes.

Primeiro, alimentos in natura ou minimamente processados são a base da alimentação.

Há poucos alimentos processados, como pães e macarrão.

E gorduras e óleos, como a manteiga, são usados com moderação para tornar alimentos mais saborosos.

Além disso, alimentos ultraprocessados – coisas como salgadinhos de pacote e macarrão instantâneo — são evitados.

Com tudo isso, as refeições são diversas, com calorias provenientes de muitas fontes. A alimentação pode até ser simples, mas é farta e variada.

Agora, vamos comparar essas refeições com aquelas feitas por brasileiros reais, em situação de insegurança alimentar, registradas pelo IBGE.

O primeiro brasileiro faz a primeira refeição do dia é às 11h, com quatro bolachas salgadas e uma xícara de café.

O almoço acontece já na metade da tarde, às 16h: um prato de macarrão com salsicha.

No final da tarde, às 18h, o lanche é um prato de cuscuz paulista e um copo de café.

Na janta, às 23h, novamente macarrão com salsicha, dessa vez acompanhado de arroz branco.

Ainda que essa pessoa tenha feito todas as refeições em quantidade suficiente, é perceptível que existe uma monotonia, e que os pratos estão longe do ideal.

O excesso de comidas como pães e massas é frequente em famílias para as quais o preço de alimentos mais variados e in natura começa a ficar proibitivo.

Isso é reforçado pela presença solitária das salsichas junto ao macarrão — trata-se de um embutido ultraprocessado que é usado para substituir alternativas mais ricas como bife ou frango. Entre 1970 e 2003, as carnes embutidas cresceram sua presença na alimentação brasileira em 300%.

A presença de alimentos ultraprocessados pode ser ainda mais pervasiva. É o que vamos ver no próximo caso, nas refeições feitas por outro brasileiro em insegurança alimentar.

O dia começa às 7h com dois pães franceses e uma xícara de café.

Na metade da manhã, às 9h, há uma bala.

O almoço, às 12h, tem dois ovos de galinha e um pacote de macarrão instantâneo.

Às 13h, quatro bombons.

De noite, às 21h são três copos de refrigerante.

E, às 22h, no lugar do jantar, mais um bombom.

Nesse caso, a alimentação é quase integralmente feita de ultraprocessados. O consumo desse tipo de comida tem aumentado em todo o país nas últimas décadas. Biscoitos recheados, por exemplo, são quatro vezes mais comuns na alimentação brasileira hoje do que há 50 anos.

Aqui, também há clara escassez de comida. Durante a noite, o consumo de alimentos se resumiu a um bombom e refrigerante.

O próximo caso também revela escassez de alimentos, mas com uma configuração diferente.

Nesse caso, a primeira refeição é às 8h, com um pão francês e uma xícara de café.

No almoço, às 13h, são quatro colheres de arroz, duas de feijão e quatro pedaços de linguiça.

A última refeição do dia foi já às 17h: um único pedaço de melancia.

A falta de comida, aqui, também é evidente. Entretanto, os ultraprocessados não são tão frequentes — é o caso, apenas, da linguiça.

O restante, ainda que em pequenas quantidades e com pouca diversidade, não fica muito distante do que seria um prato saudável.

Esse exemplo mostra que ainda há, no Brasil, um legado alimentar saudável, por mais que o avanço de ultraprocessados seja constante. O que falta para a população em insegurança alimentar é renda e acesso – e, por parte dos governos, políticas públicas para garantir isso.

O último exemplo de refeições realça como o acesso a alimentos ainda é um problema significativo.

Aqui, o dia começa às 7h, com três pedaços de peixe e cinco colheres de farinha de mandioca.

Às 9h, no meio da manhã, o lanche tinha três bananas.

Ao meio dia, o almoço tem quatro pedaços de peixe e cinco colheres de farinha de mandioca.

Durante a tarde, às 16h, a comida foi um prato de caldo de peixe.

E, no jantar, às 19h, novamente quatro pedaços de peixe e cinco colheres de farinha de mandioca.

Apenas três tipos de alimento — banana, peixe e farinha de mandioca — são responsáveis por toda a nutrição desse brasileiro.

Esse tipo de monotonia alimentar já foi diagnosticado por Josué de Castro há 75 anos e ainda persiste no país.

Quando falamos do retorno da fome, estamos falando, sim, de pessoas que não tem absolutamente nada para comer.

Entretanto, também estamos falando de pessoas que não têm acesso adequado e garantido a alimentação de qualidade.

Quando a insegurança alimentar avança, mesas reais como as retratadas no Guia Alimentar brasileiro ficam cada vez mais raras.

Referências

Monteiro CA, Benício MHDA, Freitas, ICM. Evolução da mortalidade infantil e do retardo de crescimento nos anos 90: causas e impactos sobre as desigualdades regionais. IN: velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e de suas doenças. Carlos Monteiro (org.) 2000.

Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Ministério da Saúde, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.

Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC). Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI), 2019.

Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 2021.

Instituto Brasieiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.

Créditos

Desenvolvimento: Tiago Maranhão | Ilustrações: Vallery Victoria | Roteiro: Rodrigo Menegat

ZABELÊ COMUNICAÇÃO

CÁTEDRA JOSUÉ DE CASTRO