Crédito Alass Derivas | @derivajornalismo

Que braseiro, que fornalha: a crise socioambiental e alimentar

Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem?

Josué de Castro, Geopolítica da Fome, 1953

A ONU declarou em 2021 que Madagascar é o primeiro país no mundo a apresentar fome decorrente das mudanças climáticas. Mudanças climáticas que, por sua vez, decorrem da ação humana e, em grande medida, da forma como nos relacionamos com a terra, como produzimos nossos alimentos e nossa energia. É o mundo ao avesso: chegamos a tal ponto paradoxal que a própria forma como produzimos comida produz, no fim das contas, fome.

Evidentemente que nos referimos aqui a um tipo específico de produção de alimentos – focado em monoculturas, que coloca em risco a diversidade e que, expansivo, tomou para si boa parte do território nacional. Josué de Castro identificava nesse modelo de produção, resquício do período colonial e escravocrata, algumas das raízes da desigualdade, da pobreza e da fome brasileiras. Hoje, 75 anos depois de “Geografia da Fome” (e 68 depois de “Geopolítica da Fome”), pode-se acrescentar à conta dos herdeiros do colonialismo (os latifúndios de monocultivos e a pecuária extensiva de baixa tecnologia) – entre outros embaraços – o agravamento da crise climática.

Com crescimento de 44,6% na área ocupada nos últimos 35 anos, a agricultura e a pecuária, somadas, avançaram sobre mais 10% da área total do Brasil, para além do que já ocupavam. A expansão não se dá sem efeitos colaterais: por onde avança, o atual sistema produtivo deixa rastros de violência. Por exemplo, a pecuária e atividades próprias da agroindústria (como o uso de agrotóxicos, os monocultivos, a extração de madeiras) respondem, sozinhas, por mais da metade dos conflitos identificados pela Fiocruz em seu projeto “Mapa de Conflitos”, que rastreia territórios nos quais há contendas socioambientais. Entre os impactados pela expansão agropecuária, estão agricultores familiares, assentados da reforma agrária, povos originários, comunidades periféricas, pescadores artesanais, quilombolas, ribeirinhos e seringueiros.

Não é por acaso, então, que o Brasil vem registrando recordes funestos ano após ano. Em 2020, o país perdeu 158 hectares de floresta por hora (o equivalente a um Parque do Ibirapuera); houve, ao todo, um aumento de 14% na área desmatada em relação a 2019, que já havia registrado altas históricas. A área total desmatada no país foi de 13,8 mil quilômetros quadrados em 2020 – com destaque para o estado do Pará, na região amazônica. A estimativa do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) é de que, sem melhora no atual cenário, a taxa de desmatamento – que cresce ininterruptamente desde 2017 – será de 13,2 mil quilômetros quadrados somente na Amazônia Legal em 2021. O ano de 2020 também marcou recordes no número de queimadas: comparado ao ano anterior, a alta em focos de incêndios no território nacional foi de 15%. Em 2019, a alta já havia sido de 47%. Em média, entre 1985 e 2020, o Brasil queimou uma área maior que a Inglaterra por ano.

A terra arde.

“Quando oiei’ a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu preguntei’ a Deus do céu, uai
Por que tamanha judiação?”

O clássico “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, foi lançado em 1947, um ano depois do “Geografia da Fome”, de Josué de Castro. Falam de um mesmo Brasil.

A música ressalta a severidade da seca no Sertão, da desesperança e da diáspora. Hoje, contudo, não é só o Sertão que arde. Os efeitos da crise climática (e da ação humana que a desencadeia) são sentidos em outras regiões, como evidencia a desertificação da Caatinga e do Cerrado (o surgimento do “Deserto de Gilbués”, no Piauí, é um bom exemplo) e o crescente desmatamento das regiões de floresta em todos os biomas brasileiros. A Amazônia perdeu, entre 1985 e 2020, uma área equivalente ao Chile de sua cobertura vegetal natural. No mesmo período, a mineração cresceu 656% na região; a agricultura e a pecuária cresceram 151%.

O sistema agroalimentar está intrinsecamente conectado a esses números. Não deve ser mera coincidência, afinal, que mais da metade das áreas com focos de incêndio na Amazônia sejam de desmatamento recente. Historicamente, o avanço do agronegócio esteve sempre entrelaçado à grilagem de terras, à pressão contra territórios de comunidades tradicionais; ao corte ilegal de madeiras; ao fogo que “limpa a área” e abre terreno para a pecuária expansiva ou para o plantio de monocultivos – atividades altamente poluidoras, como veremos abaixo.

Dados preocupantes


– Em 2020, a área desmatada com indícios de ilegalidade foi de 98,9%;

– Ainda assim, até abril de 2021, apenas 5% da área desmatada com evidências de ilegalidade havia sido objeto de autuação ou embargo pelo Ibama;

– Ibama, aliás, que sofre com o desmonte das políticas públicas e ambientais e conta hoje com apenas 26,6% dos analistas necessários para ações de fiscalização (segundo a Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas do próprio instituto);

– mais de um terço dos desmatamentos em 2020 teve sobreposição com áreas de reserva legal, área de proteção ambiental ou nascentes – todas protegidas pelo Código Florestal.

Fonte: MapBiomas


Florestas estressadas

Assim, onde havia árvores, frutas, raízes e pessoas, passou a ter boi e alimento para boi e outros animais, como frangos e porcos, que comem rações à base de grãos – soja e milho, especialmente.

Os impactos ambientais provenientes dessa alteração na composição territorial são vários: um deles está na emissão de gases de efeito estufa. A mudança de uso da terra (como é o caso do desmatamento para implantação de pastagens) e a agropecuária são os grandes responsáveis pelas emissões desses gases no Brasil. Somados, representaram 73% das emissões em 2020, colocando-nos em uma posição desproporcionalmente alta e desconfortável no ranking dos países que mais contribuem para a crise climática. Além disso, os próprios impactos ambientais da alimentação do brasileiro cresceram nos últimos 30 anos – muito devido à dieta baseada em ultraprocessados: foram registrados aumentos de 21% na emissão de gases do efeito estufa, 22% na pegada hídrica e 17% na pegada ecológica.

Estima-se que apenas 2% da soja plantada no mundo seja destinada ao consumo humano – com os 98% restantes se faz, principalmente, ração animal, embora óleo, tinta e pneu também estejam entre os destinos do grão. E, da parte destinada ao consumo humano, boa parte ainda vira alimento ultraprocessado, de baixo teor nutricional e que mantém, mesmo após toda a transformação que sofre, os rastros dos agrotóxicos usados em seu desenvolvimento. É isso que mostra um estudo do IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), que identificou a presença de venenos em 27 ultraprocessados populares no dia a dia dos brasileiros, como bisnaguinha e bolacha – produtos que têm, ainda por cima, forte apelo infantil.

Um estudo do INPE assinala outra sequela ambiental grave: devido às queimadas e ao desmatamento, a Amazônia passou a ser fonte de carbono. Ou seja, a floresta – ou o que resta dela – está perdendo sua capacidade de mitigar as mudanças climáticas, passando – em realidade – a contribuir com a emissão de carbono para a atmosfera (o que também aumenta a suscetibilidade da vegetação ao fogo). As regiões da Amazônia com 30% ou mais de desmatamento ficaram mais secas, mais quentes e com uma temporada de estiagem mais longa, gerando um período de grande estresse para a floresta. Essas regiões apresentaram emissão de carbono 10 vezes maior que aquelas com desmatamento inferior a 20%, aponta a pesquisa

Foto: Amanda Perobelli/Reuters.

O artista Mundano transformou cinzas das queimadas de quatro biomas – Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal – em tinta para homenagear os brigadistas que combatem o fogo e mantêm as florestas brasileiras em pé. “Brigadista da Floresta”, painel de quase mil metros de altura no centro de São Paulo, é uma releitura de “Lavrador de Café”, de Candido Portinari. Ambos retratam o trabalhador brasileiro do meio rural, cada um a seu tempo e à sua forma.

Leve-se em conta ainda as altas quantidades de agrotóxicos usadas nas lavouras de monocultura Brasil afora (agrotóxicos estes que, aliás, obtiveram liberações recordes nos últimos dois anos: em 2019 e 2020, foram quase mil agrotóxicos aprovados pelo governo). 

Como que a exemplificar a política indulgente para com os químicos, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) identificou uma série de altas: (1) no  número de estabelecimentos agrícolas que utilizam agrotóxicos; (2) no volume de comercialização dessas substâncias; (3) no número de novos registros concedidos aos venenos; e, por fim – e em consequência dessa lista -, (4) na intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola.

O glifosato – agrotóxico mais popular no Brasil, comumente utilizado na plantação de soja – está associado ao aumento da mortalidade infantil. É o que aponta estudo realizado por pesquisadores das universidades de Princeton, FGV (Fundação Getúlio Vargas) e Insper: a disseminação do glifosato nas lavouras de soja levou a uma alta de 5% na mortalidade infantil em municípios do Sul e Centro-Oeste que recebem água de regiões sojicultoras. A pesquisa indica que o agrotóxico mais usado do Brasil está associado a 503 mortes infantis por ano.

E os efeitos danosos dessa prática não são sentidos apenas por agricultores, pecuaristas ou trabalhadores das indústrias de agrotóxicos. Toda a população está suscetível à intoxicação por meio do consumo de alimentos e de água contaminados. Ainda em 2015, a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) estimava que cada brasileiro consumia em média 7,3 litros de agrotóxicos por ano. Entre as doenças oriundas da contaminação por esses pesticidas estão asma brônquica, fibrose pulmonar, diferentes tipos de câncer, arritmias cardíacas, doença de Parkinson, dermatites, neuropatias periféricas, lesões hepáticas e renais.

O veneno também vem pelo ar: a Agência Pública e a Repórter Brasil revelaram recentemente que, nos últimos 10 anos, cerca de 30 mil hectares de vegetação nativa da Floresta Amazônica foram envenenados por agrotóxicos despejados de avião, com o intuito de acelerar o desmatamento de grandes áreas e abrir espaço para a soja e para o gado. A área corresponde a 30 mil campos de futebol. Diga-se de passagem: esses foram os casos que o Ibama conseguiu fiscalizar. É provável que a quantidade de agrotóxico jogado dos céus tenha sido maior.

Outro paradoxo irrompe: a agropecuária, a maior causadora das mudanças climáticas e alterações ecológicas nos biomas brasileiros, é também a atividade econômica mais diretamente atingida em termos de impactos e perdas. Afinal, depende da chuva e do equilíbrio natural – e, todavia, produz a seca e o desequilíbrio.


Do monocultivo ao “monoconsumo”

O ciclo de violência que amplifica a crise climática – grilagem de terras, desmatamento, queimadas, agrotóxicos – está atrelado a uma cadeia produtiva mais extensa e que, muitas vezes, esquecemos de conectar: financiadores, distribuidores, supermercados e indústrias de processamento alimentício que fazem uso de produtos originados em terras invadidas e que produzem de forma danosa e mesmo ilegal. 

A indústria dos alimentos ultraprocessados, por exemplo, demanda grandes quantidades de commodities, incentivando monoculturas como a soja, o milho e a cana-de-açúcar. Ao dependerem desse tipo de matéria prima para produzirem de forma massiva  alimentos com baixa qualidade nutricional e sem preservar a matriz alimentar original – e ainda ricos em sais, açúcares, gorduras e aditivos alimentares -, incentivam o uso predatório da terra com baixíssimos retornos e mesmo prejuízos à saúde humana, ampliando também o risco à biodiversidade e a culturas locais.

A fabricação desses produtos ainda envolve o uso intensivo de água e de energia e tem como consequência a geração de uma grande quantidade de resíduos, como embalagens plásticas. O Brasil é o quarto maior produtor de lixo plástico do mundo e, calcula-se, perde R$ 5,7 bilhões todo ano por não arcar com esse problema.

Estimativa de Josefa Maria Fellegger Garzillo

Estima-se que a adesão de toda a população brasileira a uma dieta adequada e saudável reduziria as emissões de carbono em 45 milhões de toneladas anualmente. Contudo, o que se percebe é o oposto. Um estudo recente mostra que apenas 10 produtos, sozinhos, concentram mais de 45% do consumo alimentar dos brasileiros de distintas classes sociais e de Norte a Sul do país – arroz, feijão, pão francês, carne bovina, frango, banana, leite, refrigerantes, cervejas e açúcar. Tal padronização alimentar preocupa pois representa uma perda da cultura alimentar, da grande biodiversidade alimentar e demonstra uma maior concentração de poder entre poucos produtores, indo, portanto, na direção oposta do que uma alimentação adequada e saudável significa.

As diferenças alimentares parecem ter perdido as suas características geográficas; e, se antes os hábitos alimentares estavam conectados à história, à cultura regional, às condições climáticas e à diversidade de cada lugar – como assinalava Josué de Castro -, hoje as distinções são marcadas por questões de renda e de classe. Tal homogeneização do consumo em âmbito nacional (os pobres do Sul comem o mesmo que os pobres do Norte; os ricos do Nordeste comem igual os ricos do Centro-Oeste) acaba por impactar diretamente a agrobiodiversidade e a multiplicidade de espécies vegetais e animais em cada território. 

Ao final dessa cadeia, percebe-se como são poucas as empresas que controlam o modo como o alimento é produzido e processado no mundo. Ou então como a fome é produzida e (ultra)processada.

Diagrama que mostra como a diversidade, no atual modo de produção de alimentos, é mera ilusão,

A sindemia global e a ecologia como “parâmetro civilizatório”

“Sindemia” significa a ação conjunta de duas ou mais doenças – ou de um ou mais problemas socioeconômicos – que provocam o agravamento global do estado de saúde ou da estrutura  socioeconômica das populações. Assim que, reconhecendo o entrelaçamento da crise climática com, por um lado, o agravamento da fome e da insegurança alimentar e a devastação da agrobiodiversidade em todo o planeta; e, por outro, com a obesidade  proveniente de uma cadeia alimentícia global baseada em alimentos ultraprocessados, pode-se afirmar que esse tripé – mudanças climáticas, insegurança alimentar e obesidade – constitui-se como uma verdadeira sindemia global. De causas e consequências múltiplas, deve ser enfrentada também com a mesma pluralidade de ações e propostas de soluções interconectadas.

Foto: Brasil de Fato

Ora, existem alternativas à agricultura de alto impacto dos monocultivos, atrelada a uma rede alimentícia global de ultraprocessados. É o caso da agricultura familiar, responsável por boa parte da mandioca, do arroz e do feijão que chega à mesa das famílias brasileiras. Os assentamentos da reforma agrária – medida necessária para superarmos a crise atual, defendia Josué de Castro – são grandes centros produtores agroecológicos, opondo-se ao modelo de produção hegemônico. Durante a pandemia e o cenário de agravamento da fome, inclusive, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) formou uma rede de solidariedade junto a outras organizações que doou, até julho de 2021, mais de 5 mil toneladas de alimentos de qualidade em periferias urbanas e rurais do Brasil.

Contudo, políticas de incentivo à agricultura familiar têm sido sistematicamente esvaziadas. A liberação de crédito e a compra de alimentos da sociobiodiversidade por intermédio dos mercados institucionais – como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) – representaram um avanço fundamental para a valorização de culturas locais e espécies nativas em seu potencial ambiental e nutricional. Não bastando, serviu também para articular cadeias de produção e renda para a agricultura familiar e comunidades tradicionais, fomentando um sistema agroalimentar socialmente mais justo e sustentável. Mas, no Orçamento de 2021, o Pronaf perdeu R$ 1,35 bilhão; já o PAA enfrentou uma redução de 92,5% na verba em 2020.

“Natureza Morta 1” (2016), parte de uma série produzida por Denilson Baniwa

A demarcação de terras indígenas e a garantia de direitos de comunidades tradicionais é também uma das medidas mais eficazes de proteção ambiental: segundo o MapBiomas, menos de 1% do desmatamento no Brasil entre 1985 e 2020 ocorreu em terras indígenas. Os povos originários provaram-se, ao longo dos séculos, os verdadeiros guardiões da biodiversidade brasileira, junto ao campesinato, aos quilombolas e a outras comunidades tradicionais espalhadas pelo país. Ainda assim, não são reconhecidos como tais: o governo Bolsonaro não só manobrou para travar a demarcação de terras indígenas como certificou fazendas em áreas que aguardam demarcação – e isso tudo em meio a discussões como a possibilidade de perdão a grileiros de terras e de um “marco temporal” que desconsidera o histórico esbulho sofrido pelos povos originários.

Josué de Castro morreu em 1973. Não testemunhou o agravamento da crise climática. Ainda assim, já apontava a ecologia como “novo parâmetro civilizatório”. Equilíbrio socioambiental, fortalecimento das culturas locais e respeito à agrobiodiversidade: décadas atrás, o autor já via no horizonte as saídas para a inevitável crise do nosso modelo de produção e de desenvolvimento. O pensamento ecológico do autor deslocou o problema do desenvolvimento do aspecto puramente quantitativo (crescer ou não crescer) para o exame da qualidade do crescimento:

“[…] crescer é uma coisa; desenvolver é outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido”

(in CASTRO, Anna Maria de, 1996: 111)

Foto em destaque: Alass Derivas